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Esqueceu a Senha?

Capítulos (3 de 23) 02 May, 2020

Blue: 003

Tetsu Tetsuya passou a ser listado como “pessoa peculiar perigosa” pela Mythpool, mais ou menos em março daquele mesmo ano. Foi em uma operação exclusiva de Suny, uma missão secreta de nível internacional, que o Assassino Intocável acabou aparecendo. Consistia em uma operação de assalto a um navio que continha certos artefatos mitológicos ocidentais e que estava a comando de um grupo terrorista, daqueles que lançam enigmas na internet para recrutar novos membros.

O que aconteceu foi que Tetsu aparentava estar com a mesma missão de minha parceira, só que agiu de forma mais... indelicada, se é para não dizer desumana ou brutal.

Embora Suny tenha concluído a missão, salvando os artefatos e interceptando o navio, o Assassino Intocável decidiu mostrar ser digno de sua alcunha e, criando um show de horror na embarcação, ele torturou e mutilou todos os terroristas. E quando digo todos, não estou querendo dizer só os que estavam no navio. Tetsu também mostrou ser bem mais informado que a própria Mythpool, e não satisfeito com a carnificina em alto-mar, se teletransportou com o navio para acima do QG terrorista.

Ele simplesmente surgiu com o navio no céu e deixou a gravidade fazer o trabalho sujo.

Quero colocar ênfase em: o cara me apareceu com um navio no meio do ar e esmagou um covil terrorista que era procurado por anos.

A moral da história é que o Assassino Intocável acabou saindo como o “terrorista” daquela operação. Mas, só uma declaração sem provas de Suny não era o suficiente. Até porque, Tetsu mal foi visto pela minha parceira. Ela só deduziu que fosse ele, porque o Assassino Intocável era uma lenda dentre os agentes da Mythpool. E Suny acreditava nessa lenda.

Eis que, na noite do dia seguinte ao ocorrido no estabelecimento subterrâneo, Vosso Humilde Narrador e sua parceira, marcaram de encontrar Yuna no Aeroporto de Tóquio, onde já estava reservado um jato da Mythpool para nos levar aonde as coordenadas que o shinigami nos passou, indicavam.

Naha, Okinawa.

Para o lado sulista da Terra do Sol Nascente.

Chegamos lá por volta das 23:30. Praticamente, uma hora e meia de uma viagem quase totalmente tranquila, não fosse pelo clima esquisito que pairava na aeronave graças as trocas de olhares de Suny e Yuna.

Temia que as duas fizessem algo que causasse a queda daquele avião.

— Ainda bem que chegamos bem — murmurei.

— Eu ainda não suporto ela — comentou minha parceira, passando por mim e tomando a dianteira.

Logo depois, a hanyou parou ao meu lado.

— Por que esse ciúme todo? Você nem é tudo isso.

— Obrigado pela parte que me toca.

— Muito de nada, seu pamonha. — Ela sorriu.

Naquela noite, Yuna estava especialmente chamativa. Geralmente, só sua beleza jovem era mais do que suficiente para capturar a atenção dos olhares alheios. Mesmo que, como assassina, ela conseguisse ocultar sua presença, quando não o fazia, era sempre vítima dos holofotes. Mas, especialmente sob o final daquele dia de verão, a garota apareceu vestindo uma longa regata de basquete amarela, que cobria metade das coxas de suas pernas nuas. Além de seu eterno gorro cinza, nos pés, estavam tênis brancos de corrida e, na mão esquerda, uma luva roxa que se estendia até metade de seu bíceps.

Vestimentas um tanto quanto excêntricas, que acabavam chamando mais atenção do que aquela exibição de pele do dia anterior.

— Já contou a ela? — Disse a hanyou.

— Oe? Contar o quê?

— Sobre nós, ontem. Na verdade, sobre você, se aproveitando do meu corpo.

— Quê? Eu não me aproveitei de nada.

— Admita. É um pedófilo incurável.

— Vai começar, é?

— Não, não — foi mais ligeiro que um estalo, dois dedos de Yuna voaram contra meu rosto e ela apertou minha bochecha de maneira carinhosa. — Só estou brincando.

Seus dedos soltaram minha pele facial. Ela levou suas mãos para cintura.

Vendo minha demora para processar uma reação, ela continuou:

— Ontem eu vi um lado seu, além do tradicional medroso e inútil de sempre. Não sei se não posso chamar de medo, para ser sincera. Você estava bem assustado. Mas, seja lá o que a Kitsune te mostrou, pela sua reação, tinha algo a ver comigo. O que foi?

— ...

Eu não respondi. Exerci meu direito de permanecer em silêncio. Eu não queria dizer e nem ao menos lembrar daquela ilusão. Foi tudo absurdamente real. O calor do sangue, os gritos de dor, o brilho de seus olhos...

Yuna respeitou meu silêncio. Não o confundiu com omissão proposital.

— Se não quer dizer, seu pamonha, tudo bem. Não esperava que dissesse, sei como é estomago fraco. Suponho, considerando os poderes de seu filho, que tenha sido algo muito chocante com relação a minha pessoa.

— Onde quer chegar?

— Você se importa comigo, não é? Se importa de verdade.

Eu desviei o olhar. Era uma questão constrangedora.

— Não é como se eu sentisse algo...

— Obrigada.

— Hã?

Aquela palavra me fez olhá-la nos olhos novamente. O par de safiras que Yuna carregava em seu rosto penetrava fundo em minha alma, tanto quanto suas lanças de gelo penetravam suas vítimas de assassinato.

— Obrigada por se importar comigo... mesmo sabendo da minha doença. — Agora, ela quem desviou o olhar. — Você viu meu maior defeito e mesmo assim se importa comigo. Independentemente do que você viu, você derramou uma lagrima ao me ver bem... ninguém nunca fez isso por mim. Então, obrigada.

— ...

Eu ainda continuava sem saber como agir.

— Diga alguma coisa, seu pamonha — seu rosto corou. — Não torne tudo...

De súbito, nossa conversa foi interrompida. Não por alguém ou alguma coisa, mas sim, por algo. Algo que aconteceu de repente. Com um baque, enquanto saíamos do aeroporto, Suny, que estava à nossa frente, puxou da bainha a lendária lâmina Totsuka. Embora imperceptível para mim, por conta da velocidade, destreza e elegância de minha parceira, a hanyou não teve dificuldades para notar que algo de errado não estava certo ali.

— Vão para algum lugar, vira-latas?

Diante de Suny, um cara loiro de cabelos espetados, surgiu em um teletransporte, fazendo minha parceira ficar em guarda. Os olhos vermelhos como rubis já eram conhecidos por Vosso Humilde Narrador. Afinal, não era ele o assunto até momentos atrás?

Tetsu Tetsuya, o Assassino Intocável.

— Tsc, o que ele faz aqui? — Murmurou Yuna.

— Você? — Disse Suny, com sua espada apontada para ele. — Eu conheço você!

— Hmm? — O também hanyou, que tinha sua atenção mais voltada para nós do que para minha parceira, acabou mirando os olhos vermelhos em seu rostinho bonito, antes de medi-la da cabeça aos pés. — Não me lembro de você, plebeu.

— Como é? — Rangeu os dentes Suny.

Tetsu ignorou o gesto de ira de minha parceira e voltou a nos olhar. Na verdade, voltou a olhar a Assassina de Youkais. Ele passou por Suny com um teletransporte, ficando no espaço entre nós e ela. O Assassino Intocável trajava uma camiseta verde-militar, uma calça jeans rasgada nos joelhos, e tênis pretos, sem cadarço.

O par de rubis entrou em contato com o par de safiras.

— O que veio...?

— A chefe mandou eu escoltar você. Perdeu a reunião de ontem à noite. Chegou hoje de manhã e não deu satisfação. Depois, no final da tarde, saiu sem falar nada, e usando o 23º Quioto. Motivos suficientes para a chefe ficar um pé atrás com você, já que não está em missão. — Seus olhos se moveram ligeiramente em minha direção. — Pelo menos, não pela AAA.

— Ei. Primeiro, o pamonha aqui não tem nada a ver com isso. Segundo, você andou me espionando, foi?

— Tsc, só segui ordens. Você viu o tempo que ficou no banho?

— Hã, eu sou cheirosa como uma flor. Então, necessito de banhos demorados. Você não reclamou do meu cheiro, não é? Muito pelo contrário.

— Não se iluda. Você foi só sexo...

SLAP! O movimento do braço da híbrida foi direto e seco. Veloz o suficiente para deixar qualquer mosquito sem reação. O tapa acertou Tetsu sem gentileza. Mesmo que, além da velocidade, tenha parecido com um tapa normal, o estrago causado foi mais surreal que a agilidade com que ele foi aplicado.

A mandíbula do Assassino Intocável foi totalmente deslocada. Praticamente, seu lado esquerdo pareceu se soltar por completo do resto do rosto, ficando meio pendurada. Uma imagem pesada demais para um local público.

— Pois é, você também — respondeu Yuna às últimas palavras do assassino. A mesma mão que o estapeou foi para sua cintura. E ela sorriu para ele.

Um sorriso sincero.

Tetsu cerrou um punho, o que me fez levar a mão instintivamente para minha arma, mas, ele nada fez contra a hanyou. Nem esboçou reação de que iria fazer, para ser sincero. Ele só usou o punho fechado para arrumar o maxilar e auxiliar sua regeneração.

— Bem — começou ele —, irei com vocês, vira-latas. Quero saber o que estão fazendo.

— Ordens da chefe, é?

— Não. É um capricho pessoal.

— Então, sem chance — Yuna deu um passo para o lado, driblando o assassino que estava à sua frente, mas teve seu braço agarrado pela mão do loiro.

— Solte — a garota disse como um decreto real. — Solte se não quiser começar uma discussão de relacionamento...

— Por que não me disse que meu pai está vivo?

Não querendo ser irônico aqui, mas Yuna congelou àquela pergunta. Não respondeu nada. Exerceu seu direito de ficar em silêncio. Atitude que confirmava que a garota estava omitindo tal informação de seu colega de trabalho.

Tetsu a soltou. Yuna alongou o braço que fora segurado.

— Como soube? — Ela teve a cara de pau de responder com outra pergunta.

— Ele veio até mim. Ontem de madrugada. Disse que estava indo encontrar uma amiga e que estava atrasado. Foi isso que me levou a perguntar a chefe se você estava em alguma missão e que nos colocou na situação que estamos agora.

— Ele é meu departamento — falou a hanyou. — É um youkai, então pode deixar comigo...

— Pois você não está em missão pela AAA. Está agindo por questões pessoais. Você também não gosta muito do meu pai.

— Não gosto dos youkais em geral — comentou ela.

— Hmph, sabe que sou o único que pode enfrentar meu pai em pé de igualdade. Além do mais, a julgar pelo seu uniforme, tenho ideia de quem seja a tal amiga que meu pai mencionou.

Yuna suspirou. Um suspiro de desistência.

— Está bem, você pode vir, mas nada de coisas extravagantes.

— Esperem um pouco. — Era Suny quem estava entrando na conversa. — Essa missão não é de vocês — ela pousou a ponta de sua lâmina no peito do Assassino Intocável. — Sou eu quem faz as decisões aqui. Já não basta uma assassina corrompendo meu grupo, agora você... me diga: foi você quem acabou com aquele grupo terrorista em março? Você é realmente o lendário Assassino Intocável?

— Lendário? Tsc, eu não sei do que está falando, vira-lata.

— Não brinque comigo! Eu me lembro desses olhos... você... você é o lendário, não é?

— Essa palavra de novo — resmungou Tetsu.

— Ei... — enfim Vosso Humilde Narrador se meteu na discussão. — Suny...

— O que é? — Perguntou, sem tirar os olhos do assassino.

— As pessoas... estão começando a pegar seus celulares.

Minha parceira continuou encarando Tetsu por alguns instantes, mas, por fim, baixou sua espada. Ela olhou para as poucas pessoas que haviam notado a situação ao redor e escondeu sua lâmina na bainha.

— Vamos focar na missão — falei. — Se Tetsu vai conosco, ele pode nos levar de imediato para a localização do portador do escudo.

— Verdade — concordou Yuna. — Vamos economizar tempo, mesmo que não seja de meu agrado sua companhia.

— Aqui — retirei meu celular do bolso e abri o aplicativo de mapas, onde deixei as coordenadas salvas. Mostrei a imagem do local para o Assassino Intocável e ele estalou a língua.

— Vamos, plebeus, toquem meu ombro.

Yuna, a mais íntima, foi a primeira a pousar a mão no ombro esquerdo de Tetsu. Depois, com delicadeza e pedindo licença, eu levei minha mão ao seu ombro direito. Suny, por sua vez...

— Não vou tocá-lo.

— Quê? Suny, temos uma missão...

— Esta missão não é mais nossa, ????! Só você não percebe que está apegado demais a esses meio-youkais. Primeiro a pirralha, agora esse daí! Esta missão não é mais uma operação da Mythpool e você está deixando de ser quem costumava ser!

— Suny, eu...

— Você o quê? Diz!

— Eu... — não sabia o que dizer. Não esperava aquela reação de Suny. Aos poucos seus olhos estavam se enchendo de lagrimas.

— Por que você me escolheu para esta missão, hein?

— Porque você é uma ótima agente e...

— E mais nada! — Ela clamou, desviando o olhar de nós. Desviando o olhar de mim. — Estou fora da missão. — Ela passou por nós com passos fortes.

— Suny! Ei! Ei!

Ela não olhou para trás. Seguiu em frente, de volta ao aeroporto, e não moveu um músculo para olhar para trás.

— Não era aquilo que ela queria ouvir, seu pamonha.

Ao comentário quase murmurado de Yuna, eu me voltei para ela, na esperança de encontrar a solução para aquela situação. Porém, a única coisa que recebi foi um gélido olhar de julgamento e desapontamento. E, após aquele rosto decepcionado ter me mostrado o quão asno sou, a garota desviou o olhar.

— Sem mais delongas, plebeus.

Com um baque, nós três fomos jogados em um corredor psicodélico que se movia como os projéteis de uma metralhadora de luz colorida. Empurrados por uma força desconhecida, acima da velocidade da luz, nós, de súbito, chegamos em nosso objetivo.

Uma escola abandonada.

Uma esquisita escola abandonada.

— Bem — as mãos de Yuna foram para sua cintura —, espero que o portador do Kagami não seja um personagem de algum jogo de terror.

Eu retirei a mão do ombro do hanyou e olhei em volta para checar o ambiente. Embora a escola fosse abandonada, as luzes dos corredores ainda funcionavam, deixando tudo nítido, mesmo naquela hora da noite. Nós estávamos no primeiro andar, em um cruzamento em T de dois corredores. À nossa frente, na entrada à esquerda vindo do corredor principal, havia, do lado esquerdo, janelas, e do lado direito, uma sequência de três salas e no final uma última porta onde se lia: biblioteca.

— Será que tem O Caçador de Górgonas ali?

Do lado oposto, era praticamente a mesma coisa. Claro, as janelas estavam à direita e as salas à esquerda. A maior diferença era que a última sala, era só mais uma sala comum.

O corredor principal era um pouco maior dos lados. Haviam janelas à sua esquerda que davam vista para o pátio e à direita havia a entrada para uma pequena sala, uma escadaria que dava acesso ao térreo, e adiante, a entrada para a diretoria.

Nas janelas do primeiro corredor que citei, podia-se ver a quadra poliesportiva no andar térreo. Aquele corredor cobria quase toda extensão da quadra, de cesta a cesta. A arquibancada ficava somente na lateral oposta às janelas e atrás da cesta no sentido da biblioteca. Atrás da outra cesta, ficava a parede com o símbolo muito apagado do provável time daquela instituição de ensino.

E, no centro daquela quadra...

Um idoso.

Um velho meditando tranquilamente com o escudo Kagami no colo.

— Então tem a ver com um dos Três Tesouros — disse Tetsu.

— Será que ele percebeu nossa presença? — Perguntei.

— Sim — respondeu a hanyou. — Ele já sabe que estamos aqui.

+++

Song Lee era o portador do escudo Kagami. Um velho chinês de longos cabelos brancos presos em um coque samurai, que usava uma vestimenta de monge azul e andava descalço para todo lugar que ia. Ele tinha alguma coisa contra calçados, eu diria. No entanto, o verdadeiro motivo era que seus pés eram seus guias. Sim, eu sei que esse é o trabalho das patas humanas, mas a função de guia daquele par enrugado era um pouco mais complexa do que a habitual caminhada. Song Lee era cego. Seus pés eram seus olhos. Ele era praticamente um personagem de quadrinhos americanos.

Na verdade, penso que vi um personagem com característica parecida em alguma série de animação... não me recordo muito bem...

Enfim.

O idoso podia ser cego, mas era um gênio das artes marciais.

Não sei se gênio é a palavra, mas estava no nível de Yuna.

A única coisa curiosa aqui, caro leitor, é que Song Lee, estava morto quando chegamos.

Nós só não sabíamos disso.

Quando entramos no ginásio, o velho se manteve imóvel em sua posição de lótus. O escudo lendário estava sobre suas pernas cruzadas. E, realmente, ele era mais um espelho do que um escudo. Tinha a forma de um escudo. Suas bordas eram de ouro, como um escudo mitológico deve ser, mas, das bordas ao centro, ele era todo de vidro. Simplificando, era um espelho na forma de escudo.

— O que o vira-lata do meu pai quer com o escudo? — Tetsu pensou alto.

— Seu pamonha, vamos fazer a fusão.

— Quê?!

— Brincadeira. — Ela deu dois passos à frente. — Será que ele não escuta? Ele sabe que estamos aqui, mas não se manifestou. — A hanyou nos olhou por cima do ombro. — Será que isso é ser um idoso?

— Yuna, não é o momento para brincadeiras.

— Hã? — Ela arqueou as sobrancelhas. — Mas são questões sérias que passam pela minha cabeça, seu pamonha.

— Quê?! Sério que isso...

— Eu posso ouvir tudo o que falam, visitantes.

Nós todos voltamos a atenção ao velho, que ainda mantinha sua pose de meditação. Ele só havia movido os lábios para pronunciar aquelas palavras que sanaram uma das dúvidas da Assassina de Youkais.

— E, não, isso não é ser um idoso — continuou ele. — Claramente sou um homem de uma certa idade, mas não sou um idoso comum. Portando, a resposta para sua segunda pergunta, é não.

— Ah... obrigada.

— Disponha. Agora, eu farei uma pergunta a você.

— Ah... está bem. — Yuna assentiu.

O velho deu continuidade.

— Como descobriu que eu sabia da presença de vocês três?

— Bem, você é um manipulador de chi, não é? Desde que chegamos, senti sua energia cruzando o edifício como uma espécie de teia de aranha. Por isso está meditando, para manter essa rede conectada e saber a localização e chegada de qualquer indivíduo. Como todos os seres vivos tem chi, pode detectar qualquer um, até mesmo aqueles que não sabem manipular a energia.

— Interessante. A garota está correta. — O velho apanhou o escudo e desfez sua posição de lótus, se erguendo devagar, como um verdadeiro idoso, e prendendo, de alguma forma, o Kagami às costas, parecendo um casco de tartaruga.

— Eu também sei manipular chi, idoso. Não é minha especialidade, mas também consigo detectar outro manipulador dependendo da distância.

— Impressionante. De fato, não esperava que a filha de Yuki-onna fosse tão capaz.

— Você me conhece?

— Você, não. Sua lenda, sim. Yuna Nate, a Assassina de Youkais. Embora jovem e bela como a primavera, a garota tem o coração frio como a mais terrível noite de inverno. Como deve ter notado, sou cego, então não posso apreciar sua beleza da forma tradicional. Gostaria de tocá-la para conhecer seu corpo.

— Hã — ela deu meio passo para trás —, seu tarado, não vai tocar nos meus peitos, desculpe — ela abraçou os seios e terminou de dar seu passo. — Seu pamonha, ele é conhecido seu?

— O que está insinuando com isso?

— Perdão — disse o velho. — Não pensei que soaria esquisito, me perdoe.

Yuna baixou os ombros e logo baixou os braços. Ela deu um passo adiante, voltando para a posição anterior.

— Vou perdoá-lo por conta da sua idade avançada. Setembro deve ser muito difícil para você. Agora, vamos ao que interessa. Velhote, preciso do escudo que está em suas costas. Passe-o para mim e não vamos precisar começar um alvoroço.

— Hmm... — os braços do velho foram para as costas. — Peço perdão novamente. Como portador, meu trabalho é proteger o escudo com a minha vida.

— Sei, sei, o velho clichê. Entendo. Porém, eu tenho uma teoria, velhinho.

— Teoria? Que teoria?

— Bem, eu acredito que esse escudo seja falso. Na verdade, eu acredito que você seja um impostor.

— Hmph, e por que diz isso?

— Porque eu menti. Não se pode sentir o chi de quem não manipula chi, independente se todas criaturas têm chi. Um manipulador de chi saberia disso, mas você aceitou o que eu disse numa boa. A questão é que eu sou a única quem tem o fluxo de chi ativo, já que sou uma manipuladora. Dito isso, vem a questão: como você sabia que estávamos em três? Sentiu nossa presença quando entramos? Plausível, mas Tetsu anda com sua presença oculta, seria difícil até para um rastreador detectá-lo. Então, você esperou até que todos nós falássemos e simplesmente contou. Um cego de verdade faria isso, mas, como disse, você é uma farsa. Você enxerga. Contudo, para não sair do papel de cego, esperou até que nós três disséssemos algo, para ter uma desculpa aceitável.

Bela como a primavera. Fria como a mais terrível noite de inverno. Qual estação do ano representaria sua astúcia? A garota não era só um rostinho bonito. Não era só uma assassina sobrenatural. Yuna também era uma estrategista de ponta. Ela poderia ser a Assassina de Youkais, mesmo se fosse somente humana.

— Seguindo essa linha de raciocínio — continuou ela —, é bem provável que o verdadeiro portador esteja morto, e que você aí seja o mesmo que fingiu ser eu ontem à noite. Então, chega de joguinhos, aceite o xeque-mate e revele sua verdadeira face. Vamos resolver nossas diferenças hoje.

— Hmm... devo louvá-la pela perspicácia, Assassina de Youkais. — O cego disse isso e sua imagem começou a se desfazer em fumaça negra. E quando digo “imagem”, quero dizer a que ele copiou de Song Lee. A pele, roupa, escudo, tudo evaporou e sumiu no meio do ar.

O que nos foi revelado, por baixo daquele disfarce, foi um homem todo negro.

Era um homem imensuravelmente negro.

Não tinha olhos. Não tinha boca. Não tinha nariz. Não tinha roupa. Não tinha cabelo.

Era um manequim feito da mais pura escuridão.

— Obake — falou Tetsu. — Era uma raça de youkais mestres em metamorfose.

— Como assim “era”?

— Eles deveriam estar extintos, plebeu. Obakes são conhecidos como fantasmas atualmente, mas, esse daí, é um original. Além de se transformarem, eles aprendem muito rápido e têm uma capacidade de memorização absurda.

— Estou surpresa. Realmente não cogitei que seria você, Obake. Como Tetsu observou, achei que estivesse extinto. Mas isso não vem ao caso. Esta é a hora onde...

Cortando ao meio as palavras de Yuna, aquele que leva o título de Assassino Intocável, surgiu entre a garota e o youkai com seu teletransporte. Ele a olhou por sobre o ombro.

— Eu vou primeiro. Vou enfrentá-lo primeiro.

— Espere, Tetsu, temos que saber onde está o escudo — falei.

— Não quero concordar com o pamonha, mas é verdade. Deve ser bem provável que o escudo tenha sido levado e precisamos saber para onde. O Obake deve...

— Devem estar procurando por isto, não?

A nova voz ecoou por todo ginásio. Veio de uma posição mais elevada, próxima ao nosso grupo. Especificamente da cesta de basquete do nosso lado da quadra. Em perfeito equilíbrio sobre o aro da cesta, Tengu se mantinha ereto, com o escudo Kagami de baixo de um braço. Com seus olhos vermelhos ele nos observava como um sanguinário vigia.

— Vira-lata! — Tetsu não demorou para se virar para ele, deixando de lado a presença do Obake. Vermelhos como os de seu pai, seus olhos ardiam em cólera.

— Meio exagerado — comentou o youkai. — Não deveria falar desta maneira com seu pai.

— Desça aqui, plebeu! Deixe-me acabar com você de novo, meu velho!

— Deveria ser mais atento, filho. Eu já estou aí.

Praticamente no mesmo momento que o Tengu terminou sua frase, ele apareceu às costas de Tetsu, mas não com seu teletransporte. A imagem do youkai foi desenhada no local com um brilho escarlate. Foi quase como se ele tivesse sido materializado por uma força desconhecida. Já o Tengu de pé sobre o aro da cesta, se desfez com o mesmo brilho avermelhado, como se sua imagem estivesse sendo apagada à borracha.

— Tsc.

O pai tocou o ombro do filho. Foi inesperado demais para que o Assassino Intocável fizesse jus ao nome. A magia, ou qualquer coisa que fez aquele truque com o youkai, aparentemente acabou apagando sua presença até que ele fosse materializado em cem por cento naquele lugar.

Sendo assim, o intocável foi tocado.

— Depois desse truque barato — disse Tetsu —, já tenho certeza de quem está envolvida nisso.

A princípio, pensei que o assassino dirigia suas palavras ao seu pai, mas logo vi que aquela fala estava sendo direcionada a Yuna. Portanto...

— Era só isso o que queria saber, não é mesmo? — Disse ela, com o olhar fixo no outro youkai.

— Vão ter que deixar a discussão para outra ocasião. — O Tengu colocou um ponto final no diálogo dos dois.

Ainda com a mão sobre o ombro do Assassino Intocável, sem trocar sequer um olhar verdadeiro com seu filho, o youkai sumiu com ele em um teletransporte.

Tetsu Tetsuya havia sido raptado por seu próprio pai.

Agora, éramos somente Yuna e eu, diante do obscuro Obake.

— Não se preocupe — a hanyou disse para mim, ainda mantendo os olhos no youkai —, ele vai ficar bem.

— Não que seja minha preocupação, mas por que ele não se teletransportou de volta?

— Hã? Isso? Bem, assim como minha mãe, o pai de Tetsu pode anular de alguma maneira os poderes dele. Mesmo assim, seu pamonha, não precisa se preocupar, Tetsu já venceu o pai uma vez. Deveria estar atento ao inimigo à nossa frente.

— Sim, mas não sei se serei muito útil contra esse daí.

— Que bom que notou. Reconhecer que é um fracassado é o primeiro passo para o sucesso.

Lispector Yuna. Foram palavras bonitas, mas que criaram uma frase pesada demais para o meu ego conseguir ignorar. De qualquer forma, minha preocupação era outra, acima de todas naquele momento.

O escudo.

— Ei, Yuna, não tem como você dar um jeito rápido nesse daí? É que o Kagami...

— Eu sei, eu sei, seu pamonha. O problema é que esse caladão aí é duro de matar, não lembra? Pelo menos, desta vez, não seremos interrompidos!

E Yuna se moveu. Mais uma vez, mostrando toda sua força de aceleração. Os metros de distância foram percorridos em um piscar de olhos pela Assassina de Youkais, e quando vi, ela já estava ante ao Obake, com o punho armado para um golpe. Porém, não foi um soco que a garota desferiu contra o youkai. O que acertou em cheio o tórax da criatura sobrenatural foi a palma da mão de Yuna. Um golpe de mão aberta que lançou o obscuro youkai contra a arquibancada do outro lado do ginásio.

O corpo do Obake afundou nos longos degraus de concreto, criando um projeto de cratera e erguendo uma cortina de poeira no local.

— Visto a resistência dele no campo de golfe — começou a hanyou —, penso que isso foi o suficiente para nocauteá-lo. — Ela me olhou por cima do ombro e me lançou um sorriso travesso.

— Bem, deveria reconsiderar seus cálculos, filha.

A voz veio do rombo na arquibancada. Era diferente de que qualquer outra que o Obake havia copiado até o momento. Mas, por algum motivo, àquela voz, a expressão de Yuna mudou drasticamente. De um rosto sorridente, como o de uma criança em meio a uma brincadeira, a feição da hanyou se tornou a personificação do espanto. Os olhos azuis arregalaram. O sorriso se desfez e sua boca sorveu uma quantidade um pouco grande de oxigênio.

— Yuna? Você...

A cortina de poeira cessou. A Assassina de Youkais, ainda espantada com algo, se voltou na direção da arquibancada danificada. Os ombros dela baixaram, como se desistisse de algo. Os braços também pareceram perder as forças, assim como as pernas que já não se mantinham tão firmes na quadra.

Por fim, ela disse:

— Pai...?

Descendo os degraus da arquibancada e pisando firmemente no solo amadeirado, um homem não muito velho e nem muito jovem, se apresentou para nós. Ele trajava o uniforme vermelho de basquete do time de Chicago, uma calça jeans clara e tênis brancos. Os cabelos negros e desgrenhados tinham uma franja igual a de Yuna e seus olhos azul-escuros só não tinham o mesmo brilho mágico que prenderia a atenção de qualquer homem.

— N-Não...

— O que foi, floco de neve? Está assustada em rever seu pai? Eu não sou a coisa que você mais ama?

A Assassina de Youkais caiu de joelhos.

Mais ao fundo, vendo aquela situação, eu sabia que as coisas não estavam favoráveis para o nosso lado da ilha. Tive de agir de alguma forma. Saquei minha pistola e coloquei Nicolas Nate na mira.

No momento seguinte, a boca de minha arma foi congelada.

— Não ouse fazer isso! — Clamou a hanyou. — Se não quiser morrer... seu pamonha...

— Isso, filha, proteja seu pai desse delinquente e...

BOOM! A entrada do ginásio foi arrombada. Olhei por cima do ombro e o que vi foi um grande lobo de pelagem cinza invadindo a quadra e indo direto para o espaço entre Yuna e a cópia de seu pai. O cão logo soltou um latido que lançou uma onda sonora contra o Obake. Porém, o youkai saltou para o lado a tempo de desviar do ataque que acabou devastando por completo a região do rombo da arquibancada.

— Espere, Ulim!

O lobo ignorou o pedido da garota e rosnou com o olhar selvagem fixo no Obake. Ele inspirou pelas narinas caninas, provavelmente preparando outro super latido. Mas, em meio a preparação, o focinho do cachorro foi coberto por uma focinheira no estado sólido da água.

O cão gemeu alguma coisa se voltando para a garota. Nesse espaço de tempo, o youkai mudou de forma. Se transformou em uma águia e saiu voando por cima de nós, na direção da entrada. Tentei acertá-la jogando minha pistola como um bumerangue, mas a cópia de ave era tão ligeira quanto uma real e acabou desviando em pleno ar de minha arma.

Novamente, o Obake escorregou de nossas mãos.

E agora, eles estavam com o escudo Kagami.

Um cenário muito ruim.

— Guria, o que pensa estar fazendo?! — A voz era do lobo. — Por que me impediu de acabar com ele?

— Era... meu pai...

O cão bufou.

— E isso te abalou, foi? Não era você quem iria acabar com todos os youkais?

— ... — ela só desviou o olhar.

— Hmph, tem muito o que evoluir, guria. — O lobo passou por ela e colocou os olhos em mim. Duas manchas de mel em meio daquele mar de pelos nublados. — Você é da Mythpool, não é?

— S-Sim, sou.

— Ótimo. Você virá conosco. 

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